Há cerca de um mês a embaixadora da Ucrânia denunciou a participação de associações pró-russas na recepção de refugiados ucranianos, que assim teriam acesso aos seus dados, e aos dos seus familiares que ficaram na Ucrânia, em serviço militar, que entregariam à espionagem russa. Essa denúncia foi feita numa entrevista à CNN Portugal, e não teve grande eco no restante espaço mediático.
Era uma declaração generalista e pouco precisa mas hoje, um caso concreto e fundamentado é notícia de primeira página no Expresso. E passa-se na Câmara Municipal de Setúbal, de gestão comunista. Mais precisamente da CDU, já que o presidente, André Martins, é do PEV. Que já reagiu, negando que os refugiados sejam questionados sobre os seus familiares que ficaram na Ucrânia, e garantido que está assegurada a confidencialidade dos seus dados pessoais, obtidos por fotocópia dos respectivos documentos, cuja necessidade não explica. Não nega, nem perante os factos o poderia fazer, o envolvimento de um casal russo - a mulher intervém como técnica superior da Câmara, recrutada através de concurso público em Dezembro passado; e o marido intervém sem qualquer ligação funcional ou profissional com os órgãos do Município - ao serviço de uma associação pró-regime russo, num gabinete que o Município criou para o efeito, a Linha Municipal de Apoio aos Refugiados — LIMAR. E já adiantou que retirou a senhora do processo acolhimento de cidadãos ucranianos,não negando, assim e no mínimo, o desconforto e o evidente contra-senso de entregar pessoas que fogem a pessoas que identificam com as de que fogem.
O PCP é que não perde tempo para negar o que quer que seja. A Câmara de Setúbal ainda deixa entender que ... "ups", alguma coisa pode ter corrido mal. Para o PCP nada de anormal aconteceu em Setúbal, pelo que não há nada para negar, nem nada a esclarecer. Para o PCP "o trabalho com imigrantes que há muito se desenvolve no município de Setúbal caracteriza-se por critérios de integração e amizade entre os povos onde não prevalecem nem exclusões nem sentimentos xenófobos". Para o PCP, um refugiado ucraniano, acabado de chegar da sua terra ocupada e martirizada pelas tropas de Putin, que encontra pela frente pessoas a falar russo, a pedir-lhe os documentos e fazer-lhe perguntas sobre os familiares que deixou para trás, não tem que sentir medo. Tem que se sentir "integrado" e entre "amigos". Para o PCP, evitar a participação de cidadãos russos - sejam eles quem forem, e façam eles as perguntas que fizerem - na recepção e integração destes refugiados ucranianos, não é simples bom senso. É "exclusão" e "xenofobia".
Vi há pouco, numa das televisões, imagens da recepção a duas crianças refugiadas ucranianas numa escola em Itália. Eram apenas duas, as crianças ucranianas e toda a comunidade dessa escola - de crianças a educadores - a recebê-las com palmas, numa manifestação impressionante.
Não faço ideia do que terá passado pela cabeça daquelas duas crianças, mas não me é difícil imaginar o conforto que terão sentido, depois da dolorosa experiência a que foram sujeitas, serem recebidas daquela forma, naquele local desconhecido a que acabavam de chegar, à entrada daquelas portas que cruzavam pela primeira vez. Será certamente uma imagem que jamais apagarão da sua memória, que provavelmente se sobreporá a tantas outras, de angústia e sofrimento, que as marcará para sempre.
São imagens que impressionam. Mais pelo tributo, pelo reconhecimento do estatuto de heróis a estes refugiados da guerra, já que a solidariedade com os ucranianos está a ser amplamente documentada todos os dias, por toda a Europa. Em contraste absoluto com tudo o que conhecemos do nosso comportamento colectivo perante a onda de refugiados que tem chegado doutras partes do mundo, em particular à Europa, na última década. Que são igualmente pessoas, e que igualmente fogem da guerra, do sofrimento, da impiedade e da tirania.
Um contraste que se tem tornado em mais um ponto de clivagem nas sociedades europeias, e particularmente em Portugal. Até aqui era fácil dividir as ideias políticas, as sociedades e, em última análise as pessoas - cada uma - entre universalistas e humanistas, por um lado, e xenófobos e racistas, por outro. Entre os que defendiam a abertura das fronteiras aos deserdados do mundo, e os que lhas fechavam. Entre os que lhes defendiam o acolhimento, e os que levantavam arame farpado para impedir a sua entrada.
A solidariedade e o acolhimento aos ucranianos rompeu com esta divisão. Desde logo a partir dos países fronteiriços, onde o arame farpado era mais leve de levantar. E, depois, no tabuleiro político nacionalista, e até no claramente xenófobo e racista.
Se não deixou de ser claro que boa parte da esquerda não ficou lá muito confortável no seu posicionamento perante a invasão russa, e a guerra, também não deixa de ser claro o seu desconforto com rompimento daquela linha divisória. Custou-lhe a perceber um fenómeno que deixava do mesmo lado quem antes estava do outro, e procurou a explicação na cor da pele e dos olhos.
Alguns poderão ter ficado satisfeitos com a explicação. Mas acredito que tenham sido mais os que não ficaram convencidos, e que terão percebido que a História, a civilização, a cultura e tudo aquilo que faz o que somos, e como vivemos, conta mais que simplesmente a cor da pele, dos olhos ou do cabelo.
Perceber isso não é aceitar o racismo, nem a xenofobia. É simplesmente perceber que há modos de vida que se chocam. E que, isso, é o que é. E não o que gostaríamos que fosse!
A detenção, em Lisboa, de dois iraquianos que viviam em Portugal como refugiados desde 2017, suspeitos de terrorismo, é a notícia do dia, não podendo ser mais (in)oportuna, quando na ordem do dia está o acolhimento a afegãos que procuram fugir do inferno que é hoje o Afeganistão. A primeira página do Correio da Manhã, bem na linha do que é a imagem de marca do tabloide, é disso elucidativa.
A possibilidade de serem recebidos terroristas islâmicos disfarçados de refugiados é, evidentemente, muito grande. Até porque infiltrar membros nas colunas de refugiados é uma solução Win-Win para o Daesh, ou ISIS, ou lá o que em cada momento se chame: ganham porque aproveitam uma espécie de boleia com escolta para os transportar; e ganham porque minar a disponibilidade dos países em receber aqueles que deles fogem funciona como factor de dissuasão dos que lá ficam.
Por isso, cabendo aos países do Ocidente assumir as suas responsabilidades - civilizacionais, mas também históricas - e, nesse sentido, tudo dever fazer para receber e integrar refugiados cabe-lhes, especialmente através da articulação do seus serviços de inteligência, criar os filtros que permitam identificar a maior parte das infiltrações. A nós, cidadãos desses países, cabe-nos compreender que, por mais apurados que sejam esses filtros, nunca todos lá ficarão retidos. Que haverá sempre, é inevitável, terroristas a passar por refugiados, e que esse é um preço que temos que aceitar pagar.
E cabe-nos denunciar títulos como o do Correio da Manhã. A notícia terá que ser que a polícia portuguesa identificou dois dos que passaram no filtro. Antes de por cá nos terem causado problemas, e de cá conseguirem sair para os causar a outros. E essa é uma boa notícia!
A França foi de novo vítima de mais um ataque do terrorismo islâmico, agora numa nova onda de ataques solitários a alvos indiscriminados, mas simbólicos.
Este de ontem, na Basílica de Notre-Dame, em Nice - e entre mais duas tentativas, uma em Avignon e outra na própria embaixada francesa na Arábia Saudita -, matando três pessoas, entre as quais uma mulher degolada, é carregado de simbologia. E não é por, numa casa de um Deus, se matar em nome de outro. É pela própria notícia do acto terrorista praticado por um jovem tunisino de 21 anos. Nuns jornais, chegado a França no início do mês. Sem mais. Noutros, aportado em Lampedusa, em mais uma onda de refugiados, antes de entrar em França.
Não faz diferença nenhuma, mas é flagrantemente simbólico.
Mais uma fotografia a abalar consciências e a levantar o eterno dilema da sua divulgação, sempre na fronteira - e é de fronteiras que trata - entre a informação e o voyeurismo.
Falo da fotografia que por estes dias vai chocando o mundo, dos corpos inertes de um pai e da sua filha, ligados por uma T shirt que dos dois fazia um só, nas margens do Rio Grande, na fronteira do México com os Estados Unidos. O rio dos Westerns americanos, o rio do Rio Bravo de John Wayne, Dean Martin e Rick Nelson. Meia dúzia de latas vazias de cerveja americana e uma garrafa de plástico, igualmente vazia, de um refrigerante igualmente americano acentuam a cor americana do cenário que envolve o corpo da menina abraçada ao pai.
A mesma cor do sonho que levou uma jovem família salvadorenha que vivia com dez dólares por mês a chegar ao México para, como tantos milhares de outras, entre muros e rios intransponíveis, a escolher rotas cada vez mais perigosas para enfrentar a fronteira da morte, outrora do sonho.
O jovem casal fez-se ao rio, com a filha, Valéria, de dois anos, amarrada por uma Tshirt ao corpo do pai, Oscar, de 28, decididos a atravessá-lo para o lado de lá. Mesmo sabendo que naquela terra os sonhos já foram trocados por pesadelos, nada pode ser pior que o inferno de miséria e violência que querem deixar para trás. Quando a corrente do rio resolveu colocar-se às ordens de Trump e engrossar-lhes a adversidade, a mãe nadou de volta para o México. O pai prosseguiu com a filha bem colada ao corpo… até que a corrente e a morte os devolvessem à margem a que não queriam regressar.
Acontece todos os dias. Acontece com milhares de homens, mulheres e crianças que por aquelas paragens fogem diariamente da violência e da pobreza das Honduras, da Guatemala ou de El Salvador… Desta, como de outras vezes, a diferença é uma fotografia. Que pode até não fazer grande diferença. O mais provável é que dentro de dias, talvez semanas, volte como tantas outras ao esquecimento.
Não fosse o desenlace da telenovela João Félix, com essa transferência de 120 milhões de euros do Benfica para o Atlético de Madrid, e o nome da semana teria sido o de Miguel Duarte, outro jovem português, ligeiramente menos jovem mas nem por isso menos digno de admiração - antes pelo contrário – cuja história saltou para o topo da actualidade no início da semana, com a notícia de que corria - e corre – o risco de ir parar à prisão, acusado pelo governo italiano de auxílio à imigração ilegal
Em 2016 Miguel Duarte decidiu não ficar de braços cruzados a assistir ao trágico destino de milhares de pessoas e integrar-se numa “organização não-governamental” (ONG) alemã que presta apoio humanitário aos desgraçados que fogem da perseguição, da miséria e do terror para se entregarem, primeiro, nas mãos de outros seres humanos sem escrúpulos para, logo a seguir, ficarem entregues a um destino com destino certo no naufrágio dos botes em que são despejados nas águas do Mediterrâneo.
Ajudou a salvar da morte milhares de pessoas - 14 mil - que teriam engrossado os números incalculáveis da maior tragédia do século, que deveria envergonhar o mundo mas que, pelo se vai vendo, não incomoda sequer muita gente. Deixou a sua casa, a sua família e a sua vida para organizar para partir em ajuda de quem nada tem, e a quem tiraram tudo do pouco que alguma vez teve, num exemplo da mais nobre solidariedade que enaltece a condição humana. E agora é acusado de um crime, e em vias de uma condenação a 20 anos de prisão – note-se: 20 anos! -, por um governo italiano para quem os valores da dignidade humana não constituem apenas princípios descartáveis. Não contam, simplesmente…
Foi tardia, e nem sempre convincente, a reacção das entidades portuguesas, que mais pareceu vir a reboque da onda que foi crescendo na opinião pública, o único verdadeiro consolo que Miguel Duarte encontrou nestes dias, materializado em diversas iniciativas da cidadania, e particularmente na resposta pronta a uma operação de “crowdfunding” lançada para financiar a sua defesa.
Fraco consolo para quem deu tanto. Miguel Duarte merecia melhor. Porventura João Félix também - não mereceria certamente que a sua história se cruzasse com esta!
Um jovem português - Miguel Duarte - que integra uma ONG alemã (Jugend Rettet) e que há dois ou três anos se dedica a tentar salvar vidas no Mediterrâneo, foi acusado pelo governo italiano de Matteo Salvini (mesmo que o primeiro-ministro seja Giuseppe Conte) de auxílo à imigração ilegal, o que lhe poderá valer 20 anos de prisão.
Choca que haja gente como Matteo Salvini, que entenda que salvar da água pessoas que estão a morrer afogadas possa ser um crime. E logo tão condenável e tão grave que valha 20 anos de prisão. Mas na verdade já sabemos o que esperar dos Salvinis desta vida. Choca que não tenhamos ouvido ainda uma palavra do nosso primeiro-ministro, nem digo de apoio e garantias de defesa para este cidadão português - para que de resto já pediu ajuda, que está a correr por conta das habituais correntes de solidariedade - mas de um esboço de protesto que seja junto do governo italiano. E choca que o Presidente da República, que tem sempre palavras para tudo e sobre tudo, não tenha encontrado uma para este nosso jovem compatriota.
O acordo de Merkel com o seu ministro do interior e parceiro de coligação, Horst Seehofer, para já, salvou o governo alemão. Mas não salvou mais nada. Pelo contrário.
O acordo, anunciado com satisfação pelo Sr Seehofer perante o sorriso amarelo da Srª Merkel, converge na construção de "centros de trânsito" na fronteira com a Áustria e na expulsão, mandando-os de volta aos seus países, dos migrantes em "situação ilegal". Todos, evidentemente!
Angela Merkel, tornada no rosto da tolerância e da democracia europeia, capitulou. E a capitulação é sempre o fim à vista: Merkel tem a partir de agora os dias contados.
Nada de grave, que por cá mereça grande atenção. Temos coisas mais importantes com que nos preocupar como, por exemplo, estacionamento dos carros da Madona. Esse sim, o grande problema nacional do momento!
Há muito que tenho para mim que a Europa, depois de salva por duas vezes em pouco anos pelos Estado Unidos, começando por se acomodar à condição de protegida, acabou dependente absoluta dessa protecção, renunciando a qualquer juízo crítico, ignorando liminarmente qualquer conflito de interesses, e assumindo o trágico dogma que, se é bom para a América, é bom para a Europa.
Este é um tema com pano para mangas, que talvez venha a abordar num destes dias.
O problema dos fluxos migratórios, hoje central no futuro da Europa, não se pode dissociar dos interesses americanos que a Europa tomou de dores sem perceber que conflituavam com os seus mais básicos interesses geoestratégicos. E é extraordinário que, à beira da implosão, a Europa não perceba isto. Não deixa de ser dramático que Trump invoque o exemplo alemão para justificar os crimes que está a praticar na fronteira mexicana. E que Trump seja exemplo para aprofundar a crise na Alemanha, para a espalhar por toda a Europa e para acabar com o que resta da ideia europeia.
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