Ontem a Madeira tremeu. Na escala política, equivalente à de Richter, o terramoto passou do grau 9. Não caiu tudo porque os alicerces são bem fundos. São muitos anos daquilo, uma espécie de construção anti-sísmica com perto de 50 anos.
Sabe-se que Miguel Albuquerque continua de pé, mas não firme. E sabe-se que, sabendo-se como as coisas foram acontecendo na Madeira nos reinados de Alberto João e Albuquerque, a terra alguma vez teria de tremer. Estranha-se é que tenha acontecido agora, e a partir de denúncias anónimas.
Cá pelo continente treme Luís Montenegro. Mas treme também o regime. Agora com mais violência.
E treme Sócrates, que já esfregava as mãos com a prescrição do pouco que o Juiz Ivo Rosa deixara sobrar. Três juízas da Relação "arrasaram" o Despacho de Instrução de Ivo Rosa, voltaram a confirmar as acusações e enterraram o fantasma de prescrição. Não sei se dá algum ânimo ao regime. Mas devia!
José Sócrates já está no Brasil, para a tomada de posse do Presidente Lula. Para o mesmo efeito, o Presidente Marcelo parte hoje, pelo que lá se encontrarão.
Marcelo - que em Julho, quando lá esteve a fazer umas tristes figuras, já tinha avisado que lá estaria, na posse de quem quer que fosse - faz parte de uma lista de chefes de Estado que confirmou a presença na cerimónia; Sócrates, como se sabe, faz parte dos amigos pessoais de Lula. Que faz parte da lista de cumplicidades de Sócrates...
Chocando mais, menos, ou nada, não é a presença de Sócrates no Palácio do Planalto, em Brasília, para a tomada de posse de Lula que é notícia. Nem que, tendo, quer o Ministério Público quer a juíza Margarida Alves, do Tribunal Criminal de Lisboa, entendido haver perigo de fuga - entendimento reforçado durante as diversas viagens de Sócrates ao Brasil, sem delas ter informado as autoridades judiciais portuguesas - a única medida de prevenir esse risco tenha sido obrigá-lo a apresentações quinzenais num quartel da GNR. Notícia mesmo é que, para esta Justiça, quinze dias não é tempo suficiente para quem quer que seja desaparecer do seu radar.
Não faço ideia se Sócrates comunicou, ou não, à Justiça que ia sair do país. Creio até que, não ultrapassando os cinco dias de ausência do país, nem a isso estava obrigado. E como, se tudo correr bem, Sócrates estará de volta para se apresentar na GNR no próximo décimo quinto dia - a 8 de Janeiro -, fica demonstrado que, em 15 dias, ninguém foge à Justiça portuguesa!
Tendo a concordar que mais importante que o que resultar da aplicação da Justiça no caso Marquês - mesmo que continue a considerar que a resposta célere e clara da Justiça é fundamental em democracia e no Estado de Direito - é, no particular que respeita a Sócrates, o que já resultou na condenação política, ética e comportamental do antigo primeiro-ministro.
Se, sobre essas três dimensões, raras dúvidas subsistiam no final da sua governação, e muitíssimo poucas até aqui, nenhuma hoje sobra, depois do que se seguiu à pronúncia de instrução, com todas as questões jurídicas que levanta, e que são muitas, como se tem visto.
A condenação política, ética e comportamental de José Sócrates, como pessoa e cidadão que ocupou durante seis anos o mais alto cargo executivo do Estado, é hoje unânime, incontroversa e definitiva.
Falta no entanto talvez o mais importante - perceber como foi possível o país ter estado nas mãos de uma personagem destas e, mais importante ainda, perceber se está ou não afastado o risco de entregarmos o poder a pessoas desse calibre.
Quando coloco a questão nestes termos estou a colocá-la em termos gerais, o que significa que estou a convocar os partidos políticos - todos - mas também os cidadãos. Todos. É no entanto evidente que o PS tem aqui um papel muito particular, porque foi na sua esfera que tudo aconteceu.
Se é estranho, e perturbador, o silêncio institucional da maior parte dos partidos nesta questão, é de todo intranquilizante a falta de uma reacção clara e inequívoca do PS. Do partido, mas também das seus dirigentes que mais próximos estiveram de Sócrates, e que hoje se mantêm nas mais altas esferas da actividade política, e do poder.
Todos sabemos o que Augusto Santos Silva, Ministro dos Negócios Estrangeiros do actual e do anterior governos de António Costa, foi ao lado de Sócrates. O papel de João Galamba, Secretário de Estado da Energia do actual governo, na corte de Sócrates. Ou, ainda acima de todos, do eurodeputado Pedro Silva Pereira. E ninguém fica tranquilo se eles não tiverem nada a dizer, como não têm. Ou não tiveram até aqui.
Dos mais próximos do núcleo duro de Sócrates, e que Costa também recuperou, apenas Vieira da Silva, talvez por já não fazer parte do actual governo, se pronunciou. Mas não foi mais longe que considerar "que o titular de um cargo público tem a obrigação ética e moral de explicar de forma clara a origem de todos os seus rendimentos com toda a transparência, clareza e rigor”, e que “se isso não for feito, estamos perante uma situação grave.” Ou seja, da excepção, veio pouco. Muito pouco.
E tivemos reacções fortes e sem paninhos quentes de Fernando Medina, que mereceram a mais violenta resposta de Sócrates, de quem fora Secretário de Estado de Sócrates. Mas quando o deputado e ex-líder da JS, Pedro Delgado Alves, disse qualquer coisa que pudesse abrir as portas ao que o País espera do PS, aludindo a “um processo de autocrítica relativamente ao que correu mal e não pode voltar a correr” e que o partido “deve encarar os fantasmas cara a cara para a democracia se proteger” a direcção do partido, pela voz de Ana Catarina Mendes, a líder parlamentar que é a voz de Costa, caiu-lhe em cima.
É isso. António Costa continua a achar que lhe basta a frase batida do "à justiça o que é da justiça, e à política o que é da política" para passar entre os pingos da chuva. Não passa, molha-se. Porque agora é de política que se trata. E da mais séria, não é daquela com que está habituado a brincar. De Justiça, por muito que não o compreenda, estamos entendidos. Aconteça o que acontecer.
Agora é "à política o que é da política". É preciso explicar como é que gente desta trepa pela pirâmide dos partidos acima. Que teias tece. Que redes cria. Como vive quem vai trepando até ao topo e, se for estranho, se lhes basta a resposta que o avô tinha volfrâmio, a mãe um cofre, e um amigo muito dinheiro para lhe emprestar.
É preciso dizer "fomos enganados" e "tudo faremos para não voltarmos a sê-lo". E é preciso que se deixem de tretas quando falam de declarações de rendimentos, de enriquecimento injustificado ou de incompatibilidades de titulares de cargos políticos.
Sócrates não tem um pingo de vergonha na cara, nem o mínimo respeito por ninguém. Nem mesmo por si próprio, se o tivesse procuraria recato e não exposição pública, onde simplesmente cada vez se enterra mais. Quanto mais se expõe mais se mostra e, definitivamente, Sócrates só tem lado lunar para mostrar.
Quem tivesse aterrado ontem pela primeira vez, chegado da Lua sem nunca ter pisado a Terra, e assistindo descuidadamente à entrevista a José Alberto Carvalho, na TVI, poderia eventualmente ficar com alguma dúvida se aquele homem não estaria a ser vítima de tudo, e de todos. Só que ninguém que assistiu à entrevista acabou de chegar da Lua. Sócrates é que, mitómano e vivendo sempre na Lua, acabou por se convencer que nós por lá andamos todos.
Mais do que a tareia do juiz Ivo Rosa no Ministério Público, mais do que o ajuste de contas entre entre os dois únicos galos de um estranho galinheiro, mais do que os pesos e as medidas com que se medem as prescrições dos crimes de corrupção, ou até mais que as caras de gozo de Zeinal Bava, Granadeiro, que não vi mas consigo imaginar, impressionou-me a cara de pau de Sócrates, que vi, no fim.
Depois de, com todo o país a ouvir, um juiz lhe ter chamado corrupto, de lhe ter dito que "mercadejou" com o cargo de primeiro-ministro, e de ter feito seguir para julgamento acusações que lhe poderão valer doze anos de prisão, Sócrates teve o desplante de cantar vitória, de anunciar que exigia ser ressarcido e até de deixar em aberto o regresso à actividade política.
Impressionou, mas não surpreendeu. Afinal é Sócrates a ser o que sempre foi: alienado e descarado manipulador da realidade. É a cara de pau de sempre!
Pelo que já ouvimos da pronúncia de decisão instrutória do processo Marquês, que ainda decorre no momento em que escrevo, sabe-se já que Sócrates não vai ser julgado por corrupção, a acusação principal. Todas as acusações daquela natureza caíram, e as que foram consideradas já tinham prescrito.
Apenas cinco arguidos chegam a julgamento - Sócrates, Carlos Santos Silva, cada um apenas por três crimes de branqueamento de capitais e por outros tantos de falsificação de documentos, e Ricardo Salgado, por abuso de confiança, Armando Vara por branqueamento de capitais, e João Perna, o motorista de Sócrates, por posse de arma ilegal.
Poderá haver quem acuse o juiz Ivo Rosa de excessivamente garantístico, ou até de suspeitar da sua capacidade julgadora. Mas a verdade é que o seu despacho decisório está perfeitamente sustentado, e o que fica claro é a total incapacidade e incompetência do Ministério Público, a quem o juiz não poupou nas palavras. Nunca se terá ouvido um juiz tão cáustico para este órgão de investigação da Justiça Portuguesa.
Acabou por acontecer o que mais se temia. Temia-se acima de tudo que o Ministério Público não conseguisse blindar a investigação, e produzir uma acusação à prova de bala. E assim foi!
Todos tínhamos a sensação de um Ministério Público mal servido de meios, e particularmente de competência técnica, mas também julgávamos que, dado que estava em causa neste caso, e a sua relevância para a Justiça e para o país, e o tempo gasto na investigação, teria puxado dos galões e envolvido os melhores e os mais competentes recursos de que dispõe. Não foi assim, e deu o golpe final na sua credibilidade.
Bem pode agora recorrer. Arrasado por Ivo Rosa - que bem poderia ter evitado adjectivos que o próprio Sócrates usou até à exaustão, como fantasioso, e essa será a maior crítica a fazer-lhe - não se está a ver por onde possa sustentar o recurso.
Sócrates é o que é, e não deixará de ser o que é, aconteça o que acontecer a partir de agora. Já à Justiça, e em particular ao Ministério Público, exige-se que deixe ser o que é. E que sirva para servir o país e a democracia portuguesa!
Não estou a inverter nada. Não foi o Ministério Público que cometeu os crimes, foi Sócrates. Nem foi o Ministério Público que inventou as acusações. Mas foi o Ministério Público que não blindou a investigação, que permitiu, e porventura até terá promovido, fugas de informação e que foi irresponsavelmente negligente na sua incompetência.
Sócrates já foi julgado pela opinião pública, e já pouco importa o que vai fazer a Tribunal, quando for. Ou o que o Tribunal decida, quando decidir. O Minsitério Público não vai a julgamento, mas está, como nunca esteve, sob julgamento de todos nós.
Carlos Santos Silva, o amigo que todos gostariam de ter, vai confirmando ao juiz Ivo Rosa as teses de Sócrates, por mais inverosímeis que sejam, como são. Se os amigos são para as ocasiões, este vai confirmando que é para todas as ocasiões.
A casa de Paris é dele, e o dinheiro era todo dele. E saiu todo de um cofre muito grande que tinha lá em casa, igualzinho ao da mãe de Sócrates. Algum saiu do cofre para negócios em Angola, donde veio para sair para a Suíça, para onde foi para fugir a impostos...
Enquanto nós, pobres cidadãos encharcados em impostos, vivemos aterrorizados com a monstruosa máquina fiscal, Carlos Santos Silva diz-nos que isso é para meninos. Que se lixem as acusações de fraude fiscal. As de corrupção e de toda a espécie de vigarice é que não!
Por isso é que esta é cada vez mais uma história de cofres.
A histérica reacção de Sócrates às palavras de António Costa sobre as maiorias absolutas ("os portugueses não gostam de maiorias absolutas"), em carta publicada no passado fim de semana no Expresso, foi levada a crédito da sorte política do actual primeiro-ministro. Para António Costa, nesta altura, nada melhor que a hostilidade expressa de Sócrates.
Na entrevista de ontem à noite à SIC o tema veio a terreiro, tendo António Costa respondido que não quis atingir José Sócrates: “Não me passou isso pela cabeça”.
Poderia parecer que, com esta resposta - em vez de, por exemplo "cada um faz as interpretações que quer" - , estaria a desbaratar a vantagem que é ter Sócrates do lado de lá. Mas não está. Dando por certo que essa é uma vantagem que já ninguém lhe tira, com esta resposta Costa quis reduzir Sócrates à inexistência.
É por estas e por outras que lhe chamam mestre. Poderá nem ser um mestre na política, mas é um mestre na arte do jogo político. A dúvida é se a isto se chama mestre, ou se chama artista.