O governo decidiu ajudar as empresas a suportar o aumento do mísero salário mínimo nacional, decisão, por si só, discutível. Mas deixemos isso para outra altura.
Ao que sabíamos, a ideia seria apoiar empresas de mão-de-obra intensiva, dos sectores mais tradicionais da economia portuguesa, que mais recorrem a trabalho não qualificado e, por isso, com maiores dificuldades em acomodar o aumento do salário mínimo na sua estrutura de custos. Era isso, não era?
Pois...Parece que não. O Jornal de Negócios diz-nos hoje que esse apoio foi inteirinho parar à empresas de trabalho temporário e aos supermercados. E, ao dizer isto, diz-nos tudo sobre a história da maioria dos apoios públicos e dos subsídios à economia. Que nunca são o que dizem ser, nem nunca servem para o que devem servir.
Será que o governo não sabia que a maior mancha de salário mínimo não está nos sectores mais tradicionais e menos competitivos da nossa economia? Será que não sabia que as poucas empresas desses sectores que têm essa prática salarial nem sequer dispõem de meios para correr a esses apoios?
Claro que sabia, e sabe. Mas é assim que as coisas (não) funcionam. E é por estas e por outras que não saímos da cepa torta!
Começa hoje na Assembleia da República a discussão do Programa do Governo, de que muito se tem ouvido falar nos últimos dois ou três dias.
Do que mais se tem falado, e o que mais tem sido enfatizado, é do aumento do salário mínimo nacional até aos 750 euros no final da legislatura, daqui a quatro anos. Se ela lá chegar, mas isso são outros quinhentos...
Lembramos-nos do circo que se monta cada vez que se fala em aumentar o salário mínimo. Nunca pode ser, o país não aguenta, as empresas não resistem, e vem aí o desemprego. É este o circo que estranhamos que não esteja já montado, desta vez. E que, pelo contrário, haja como que um consenso nacional à volta do aumento do salário mínimo. E mais estranhamos ainda que tenham sido as organizações patronais os primeiros a aplaudir a medida.
Há quem veja nisto um mero apontamento táctico. Para defender o bem maior da legislação laboral, como se sabe o epicentro do fenómeno de implosão da geringonça, governo e entidades patronais davam as mãos na política de rendimentos e em particular no salário mínimo. Mas poderá, no entanto, ser algo mais estratégico.
O problema do salário mínimo em Portugal é ter deixado de ser o salário mínimo. Com a troika, e especialmente com o governo que quis ir, e foi, além da troika, o salário mínimo perdeu o adjectivo e ficou simplesmente salário. O problema é que, em vez de mero indicativo de referência, o salário mínimo passou, pelas mãos de Passos e Portas, a referencial da prática salarial.
O problema do salário mínimo em Portugal já nem é - pasme-se - estar muito abaixo da média europeia e ser mesmo um dos oito dos mais baixos (em poder de compra) da Europa. O problema é que o salário mínimo é hoje a retribuição de perto de um quarto dos trabalhadores portugueses, quando em 2001 era o de apenas 4% deles, e está encostado ao salário mediano, pouco acima dos 800 euros. Portugal tem, a seguir à França, o salário mínimo mais próximo do mediano (61%). Só que, em França (62%), o salário mínimo é o dobro do português.
Não se tem falado de outra coisa que de salário mínimo e da redução da TSU.
Há muito que o aumento do salário mínimo é um drama, em Portugal. Não se vêem grandes preocupações com o facto de praticamente 1/4 da população que trabalha estar abrangida pelo salário mínimo. Não se vê muita gente incomodada com um salário mínimo que é um terço do de alguns dos nossos parceiros europeus, e que raia o limiar da pobreza.
Quando se fala em aumentá-lo é que surgem as preocupações. Aí é que não falta gente seriamente preocupada. E não falta gente a reclamar medidas de compensação.
Até aqui não havia grande problema: reduzia-se a famosa TSU aos empregadores e não se falava mais nisso. Tem sido de tal forma assim que ao governo – e ao Presidente da República, acabou agora por se saber – não se levantaram quaisquer dúvidas que continuaria a ser assim.
Mas não foi. Uma improvável conjugação de linhas vermelhas da esquerda com interesses tácticos do PSD acabou com esta solução mágica.
Muito se discutiu sobre a intransigência do PSD, ao arrepio dos seus princípios e da sua prática recente. Indiferente à pressão – houve até cartas de figuras proeminentes do partido e dos patrões - Passos Coelho manteve a sua posição contranatura. Tão evidentemente contranatura, que logo se começou a suspeitar que, o que o movia não era a oposição à TSU, mas ao próprio aumento do salário mínimo nacional.
No debate parlamentar Passos Coelho desfez por completo as suspeitas, dizendo com todas as letras que, na verdade, era ao aumento do salário mínimo que se opunha. Porque, justificou, era “excessivo”!
Um aumento de 27 euros num salário, que é uma retribuição de trabalho, e não um subsídio social, que está ao nível do limiar da pobreza, é “excessivo”?
Num país decente, um partido cujo líder dissesse uma coisa destas, não ganharia eleições enquanto houvesse uma pessoa a lembrar-se disto!
Um dia depois de a redução da TSU, como medida de compensação do aumento do salário mínimo, ter sido chumbada no Parlamento, confirma-se a redução do Pagamento Especial por Conta (PEC) - mais uma aberração fiscal à portuguesa - como plano B, que deixa toda a gente satisfeita.
Obtem o pleno: de patrões, de sindicatos - não, não é apenas a UGT, é também a CGTP - do governo e da maioria!
O que não admira, porque é, de longe, uma solução melhor. Desde logo porque deixa a Segurança Social de fora, e em paz. Mas também porque não tem qualquer ligação ao salário mínimo, pelo menos não o incentiva. E não provoca nenhum tipo de clivagem no suporte parlamentar do governo, antes pelo contrário, pois a sugestão até veio daí.
Dá por isso vontade de perguntar por que é que complicaram o que era simples. Se calhar é por falta de imaginação, e porque copiar sempre foi mais fácil. É isso: o governo foi cábula!
Quando a intrujice e a aldrabice entram pela porta grande dos nossos dias elegantemente travestidas de pós-verdade e, agora, de factos alternativos, não admira que ouçamos o que hoje, bem cedo, ouvi num noticiário radiofónico a propósito da questão do dia, da semana, ou mesmo do mês: a redução na TSU, a ser hoje chumbada no Parlamento.
Dizia um dirigente de uma associação patronal do sector têxtil - não retive os nomes, nem o da associação nem o do respectivo dirigente - que o chumbo da medida aprovada em concertação social era uma catástrofe, que iria provocar largos milhares de despedimentos. E para justificar o apocalipse que se vai abater sobre o sector começou a apresentar dados em rácios que tinham por base 100 trabalhadores: o aumento do salário mínimo - dizia - já representava para as empresas um agravamento de 12 mil euros por ano, por cada 100 trabalhadores. Sem a compensação pela redução da TSU - continuou - o agravamento de custos sobe 80 mil euros por ano, por cada centena de trabalhadores.
Não sei se as contas estão certas ou erradas, nem isso é, para o efeito, significativo. Sei é que o número 100 (de trabalhadores), que lhe dá jeito para que os números ganhem um mínimo de expressão, não bate certo com o perfil de micro e pequena empresa a que a medida que a medida teria como destinatário. E que isso é intrujice!
Bem sei que o sector têxtil nacional vive do salário mínimo. Mas também sei que não pode ser aí que o sector encontre a chave da competitividade. Porque há-de haver sempre noutras latitudes quem faça o mesmo com salários mais baixos.
Não sei, mas admito que, se estes dirigentes associativos fossem tão criativos nos esforços para acrescentar valor, como são para defender o enquadramento tradicional das suas empresas, seriam bem menores os problemas de competitividade do sector. E se calhar teríamos menos vergonha de um país que pára por um aumento de 27 euros num salário mínimo nacional que abrange quase 1/4 da população que trabalha, é um terço do de alguns dos seus parceiros europeus, e já é inferior ao de alguns países de leste.
Este perigoso governo da esquerda radical vai mesmo levar para a frente a sua proposta de aumentar o salário mínimo para 557 euros. As organizações patronais acham isso um exagero, muito acima dos 540 que estavam dispostas a aceitar: são 17 euros a mais por mês, qualquer coisa que até quase chega para um café por dia. Não é bem, mas já não falta muito. Uma exorbitância!
A não ser que... Isso mesmo: a TSU... Lembram-se?
Pois, aí está ela de volta. É a solução para tudo. A sustentabilidade do sistema até está em causa. Por isso a idade da reforma sobe todos os dias. As pessoas têm que trabalhar cada vez até mais tarde, mesmo que não tenham emprego. Aos 65 anos estão em muito boa idade para continuar a trabalhar, se tiverem emprego. Já não estão é em idade para conduzir o carro, ao que parece... A TSU é que não tem nada a ver com isso. Está sempre à mão...
O governo que garantia que o seu programa era o do Memorando de Entendimento e que o seu objectivo era ir para além da troika, é o mesmo que agora diz, para contrariar a OIT – em Portugal não há oposição, são as organizações internacionais que têm de se manifestar sobre estas coisas - diz que o salário mínimo tem de ser – que não pode aumentar o salário mínimo nacional porque o Memorando da troika o impede.
O debate sobre o salário mínimo em Portugal é sempre confrangedor. Às vezes é mesmo pornográfico. É confrangedor falar do salário mínimo mais pequeno da União Económica e Monetária, é confrangedor compará-lo com todos os restantes… E é pornográfico que pessoas como o António Borges não percam a oportunidade para reclamar que baixe!
Mas a propósito deste debate gostaria de aqui trazer um artigo que o Pedro Sousa Carvalho publica hoje no Diário Económico. Partindo de uma conhecida estória do Presidente Truman – tragam-me um economista maneta, uma alegoria aos economistas que nunca dão uma resposta única (on the other hand) – chega à conclusão que Seguro e Passos têm ambos razão no actual debate do salário mínimo. Que Seguro tem razão quando reclama que seja aumentado, porque vai induzir procura que, por sua vez leva a crescimento, a investimento e finalmente à redução do desemprego. Mas que também Passos tem razão quando se opõe ao aumento – a redução deixou a cargo do António Borges, para que não fosse ele próprio tão longe – porque as empresas poupam nos custos, baixam preços, vendem mais e, aí está, o mesmo crescimento, o mesmo investimento e o mesmo resultado na redução do desemprego.
O que acho confrangedor é que possa passar pela cabeça do jornalista que, quer o primeiro-ministro quer o líder da oposição, faça aquele tipo de avaliação. Que lhe passe pela cabeça que as suas decisões resultam do rigor da análise técnico-científica do que quer que seja!
O que acho confrangedor é que se procure credibilizar o que não tem ponta de crédito. Seguro defende o aumento do salário mínimo porque isso lhe traz vantagens políticas. Passos defende o contrário porque não pode defender o mesmo que o seu opositor. Em posições trocadas defenderiam exactamente o contrário.
Porque é essa, e não outra, a visão que têm da política. E é também por isso que o nosso salário mínimo nos enche de vergonha!
PS: É evidente que temos um problema de procura na economia portuguesa. Assim sendo…
Segundo o Diário Económico de hoje o primeiro-ministro José Sócrates admite reforma das leis laborais. Entrando na notícia fica a saber-se que “o primeiro-ministro promete revelar em breve pormenores sobre a reforma do mercado de trabalho, uma das recomendações de Bruxelas”.
Ainda há bem poucos dias Sócrates jurava a pés juntos que não havia nada a mexer neste domínio. Que a reforma da legislação laboral já havia sido feita!
Estamos, evidentemente, habituadíssimos a que este primeiro-ministro diga uma coisa e, logo a seguir, o seu contrário. O que por aí não faltam é vídeos e recortes de jornais a ilustrar este mimetismo camaleónico da personagem!
Não é portanto esse o ponto: já não vale a pena bater mais no ceguinho!
É outro… Ou outros! É que não somos nós a decidir o que quer que seja, é que perdemos completamente a soberania. Perdemos a vergonha, perdemos a cara e, claro, perdemos a coluna vertebral.
A Europa – esta actual União Europeia (UE) – é que decide o que temos ou não temos de fazer. E depois comunica-nos as decisões de uma maneira verdadeiramente extraordinária: quando decidiu que a Irlanda teria recorrer ao fundo europeu FMI(zado), e à sua receita associada, diz-nos que a Irlanda decidiu pedir ajuda! Quando chama a Bruxelas o nosso ministro das finanças para lhe dar ordens diz que o governo lhes apresentou um sério programa de reformas. Quando decide, com critérios e bases técnicas insondáveis – ninguém consegue perceber qualquer relação causa/efeito entre esta crise, seja ela nacional, internacional ou lá o que quiserem, e a legislação laboral –, que Portugal tem que liberalizar o despedimento individual (é só isso que, como é evidente, está em causa) faz uma mera recomendação.
E quando recusamos aumentar o salário mínimo em 25 euros mensais – para uns míseros 500 euros –, à revelia de tudo o que há muito estava acordado entre os parceiros sociais e da sua própria vontade, sim mesmo contra a vontade das entidades patronais, e à revelia do mais elementar bom senso, fazemo-lo com medo, sim com medo, da reacção da UE.
Claro que, chegados onde chegamos, todos percebemos que há facturas a pagar. Percebemos que não é em vão que se fazem tantas asneiras como temos feito, ou como temos permitido que fizessem. Percebemos, caídos no desgoverno em que caímos, que temos inevitavelmente de perder soberania. Muitos, nas actuais condições, até o desejam: creio que, entre os portugueses, nunca terão sido tantos os federalistas.
Mas o que não percebemos é que essa perda de soberania seja apenas isso. Sem nada em troca e apenas, mais uma vez e como sempre, um mero exercício de humilhação!
Tão esquisito quanto as coisas esquisitas que de lá vêm…
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