Transparência
O Expresso divulgava este fim de semana uma sondagem promovida pela Sedes (Associação para o Desenvolvimento Económico), feita pela Pitagórica. Esta divulgação é apresentada como "A Perspetiva do Cidadão sobre as Propostas da Sedes” e diz resultar "da recolha de informação feita entre 16 de janeiro e 12 de fevereiro, através de entrevista telefónica".
A Sedes é uma velha e respeitável organização de intervenção política e social bem conhecida, como conhecidos são os seus membros, pelo menos os mais destacados. É natural que se promova - e pague, ou recolha financiamento para isso - estudos de opinião sobre os temas que coloca em agenda, e defende. Não é isso que está em causa. É outra coisa, e já lá vamos.
Os dados revelados pelo estudo - repito, todos temas de propostas da Sedes - indicam que 47% dos portugueses são favoráveis ao aumento dos gastos com a defesa nacional, com igual percentagem a ser favorável ao regresso do serviço militar obrigatório; que 70% considera necessária uma revisão constitucional; que 75% acredita que é alto, ou muito alto, o nível de corrupção no país; que 67% entende que não há suficiente separação entre política e justiça; e que 60% são favoráveis à regionalização.
Até aqui nada de especial.
Depois a coisa começa a cheirar a esturro quando, como se pode confirmar pelo link acima, começa por anunciar que ""35% confiam “pouco ou nada” na saúde pública em Portugal, apenas 26% confiam “totalmente ou muito”, enquanto 39% confiam “razoavelmente”". Olhamos, e vemos que o número que indica que 65% dos portugueses confia na saúde pública em Portugal - SNS, evidentemente - está escondido por trás dos 26% confiam “totalmente ou muito”, e dos 39% confiam “razoavelmente”. E que o que é enfatizado é o dos restantes 35% que confiam "pouco ou nada".
Mas não se fica por aqui. Quando o tema muda para o sector privado da saúde, escreve-se que "por oposição... 33% dos inquiridos confiam “totalmente ou muito” e 15% confiam “muito pouco ou nada”. Ora, se a aritmética não é uma batata, o que o estudo diz é que apenas um terço dos portugueses confia na oferta privada de saúde, número que até bate certo com os dois terços que confiam no SNS. A aritmética bate certa, o português - "por oposição" - é que não!
Se até lá acima "nada de especial", até aqui o cheiro a esturro vem da manipulação dos números na forma como são apresentados. Mas há mais.
O estudo revela que 73% dos portugueses são favoráveis à criação de um Senado, de uma segunda câmara no Parlamento, precisamente uma das propostas da Sedes. Outra é a da criação de círculos uninominais, que 71% não sabe o que é.
Se até aqui era a aritmética que não batia certo com o português, agora já nada parece bater certo. Que 60% seja favorável à regionalização poderá ser aceitável. A regionalização está no debate público há muito tempo, e até já rejeitada em referendo. Já foi há muito tempo, e a posição dos portugueses poderá hoje ser outra, a contrária. Que 73% dos inquiridos apoie a criação de um Senado - que não me lembro de alguma vez ter andado pelo debate público, e que representaria mais uma Instituição Política (mais lugares para a classe política, quando esta não anda lá assim tão bem vista) parece pouco aceitável. E não bate mesmo nada certo com os 71% que não sabem o que são círculos uninominais, bem mais presentes no debate público. Que uma tão grande maioria conheça, e seja a favor da criação de um Senado que não faz parte do debate público, mas não faça ideia do que são círculos uninominais, tema praticamente tabu na discussão política - é certo - mas, ainda assim, trazido a debate uma vez por outra, não faz sentido.