É necrologia, a notícia da morte de André Freire, um politólogo, como agora se diz.
Um investigador de ciência política e das ciências sociais. Dos melhores, que desapareceu das televisões por não encaixar no comentário político monocórdico, monocromático e subserviente que inunda o espaço mediático.
Soube-se porque era uma figura pública. Nos muitos outros casos idênticos nunca se chega a saber. Sabe-se é quando corre mal nos hospitais públicos. Aí não faltam televisões à porta, nem especialistas a declarar a morte súbita do SNS, estrangulado por "amarras ideológicas".
O Conselho de Ministro aprovou hoje o decreto de nomeação de António Gandra d’Almeida como o director executivo do Serviço Nacional de Saúde (SNS), lugar que era ocupado por Fernando Araújo.
As danças de cadeiras são sempre as primeiras grandes medidas dos governos. Esta, em particular, começou a produzir resultados ainda de ser sentada, e até antes de ser oficialmente nomeado o novo ocupante.
Quando apresentou o Plano de Emergência para a Saúde, no final de Maio, o Governo dissera que havia 9.374 doentes oncológicos fora do Tempo Máximo de Resposta Garantido (TMRG). Anteontem, a direcção executiva do SNS desmentiu aquele número, e informou que eram 2.300. Menos de um quarto!.
Confrontada no Parlamento com este desmentido, a ministra Ana Paula Martins reconheceu o erro mas não lhe deu importância nenhuma. É que - "explicou" - os números divulgados pelo governo justificam-se pelo facto de o Executivo entender que não pode haver um único destes doentes fora do TMRG.
Entende o governo, e entendemos todos nós. O que não entendemos é por que tinha de (se) enganar multiplicando por mais de 4 um número que já era esmagador. Com um esforçozinho percebemos que era para o baixar para um quarto ainda antes do "seu homem do leme" tomar posse.
Depois do lufa-lufa de segunda-feira, Marta Temido passou dois dias a matutar no problema das urgências. Ontem, ao final do dia, anunciava as soluções que tinha encontrado. Mais ou menos isto: criar uma comissão de acompanhamento e rever as condições de remuneração dos médicos.
A primeira ficou logo resolvida. Tudo o que resolve com a criação de comissões fica resolvido com o seu anúncio. A segunda ficou para resolver hoje, e ficou hoje resolvida: reuniu com os sindicatos dos médicos, e nem deu para começar a conversa. Saíram todos como entraram. Agora é só esperar que passem mais uns dias e que não se volte a falar no assunto.
Mais eficiente não se pode ser. E ainda dizem que o governo é só tangas ...
Os problemas na Saúde, velhos e conhecidos há muito, mas sempre escamoteados, são finalmente um problema. Reconheceu-o o primeiro-ministro e confirmou-o o lufa-lufa da ministra da saúde durante todo o dia de ontem. Problema, temos. Não é de ontem, nem do fim de semana seco que agitou as águas; é de há muito. Não temos é solução. E esse é o problema maior.
Não "temos um problema". Temos muitos problemas. E não temos soluções, como há muito não temos, e como ontem ficou mais claro que não temos.
Para a ministra da saúde a solução é a abertura de novos concursos. Para "quem quiser", acrescentou, sabendo que ficam sem concorrentes. Para a Ordem dos Médicos a solução passa pela revogação de um despacho qualquer, que impede os médicos do SNS de prestarem serviços ao SNS.
Para a ministra da saúde o problema não está na gestão que o ministério faz dos recursos (humanos, mas não só), em não planear a substituição dos médicos que atingem a idade de reforma e, acima de tudo, em evitar o desencanto que leva os outros a partir. Para a Ordem não há qualquer problema de falta de médicos, há médicos suficientes, e há que continuar a limitar o acesso aos cursos de medicina; é preciso é somar prestações de serviços às horas extraordinárias. No espaços mediático, político e "lobístico" é preciso é mais "privado", e retomar as PPP, como se a fatia privada do negócio da saúde não fosse a maior de sempre. Como se o SNS não fosse o porto de confiança dos portugueses, ricos e pobres, todos no mesmo barco, quando o problema é complicado. E como se os hospitais privados se não apressassem a enxotar os doentes para o SNS logo que as coisas se complicam, ou o "plafond" do seguro se torna insuficiente.
Ontem, para quem ainda não o tinha percebido, ficou claro que estes problemas não têm solução nem a curto nem a médio prazo. E que, para que o governo a encontre até ao fim do mandato, é preciso que António Costa retire o ministério da saúde da dependência do das finanças e entregue a pasta a alguém que não seja apenas o seu porta-voz.
Há poucos dias, no início da semana, num texto em que o tema central era os salários em Portugal, e o exemplo do Estado em política salarial de gestão de recursos humanos, referia uma série de "absurdos". E em particular o absurdo que se vive no Ministério da Saúde, e no Serviço Nacional de Saúde. Socorri-me de uma peça da SIC Notícias que referia a Urgência no Centro Hospitalar do Oeste. Que hoje, em Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, se tornou notícia do dia, saltando para o topo dos telejornais, pela morte de um bebé no Hospital das Caldas da Rainha.
O Hospital não conseguiu garantir a Urgência Obstétrica, e fechou-a. Como já sucedeu em muitos outros hospitais. Como já terá acontecido nesta ou noutras urgências, em outras circunstâncias. E como não terá acontecido noutras ocasiões, em que, mesmo sem condições para garantir o seu funcionamento, se terá recusado a fechá-las.
Em comunicado, a administração do Centro Hospitalar do Oeste garante “não há nenhum nexo de causalidade estabelecido entre a morte do bebé e as limitações no preenchimento das escalas”.Tanto quanto é já conhecido, mesmo sem que sejam conhecidos os resultados do inquérito aberto, isso é verdade. O bebé terá morrido por uma muito grave e rara complicação obstétrica. Que acontece, e que não teria outro desfecho se a Urgência não estivesse fechada. Nem teria sido outro o desfecho em qualquer Urgência Obstétrica em funcionamento noutra qualquer unidade hospitalar. Tanto quanto é conhecido, apesar de a Urgência estar fechada, foi prestada assistência especializada e apropriada ao parto.
A acontecer em qualquer Urgência Obstétrica em funcionamento, o incomparável sofrimento daqueles pais, e em especial o daquela mãe, não seria diferente daquele que está a viver. O dos profissionais envolvidos - e com a Urgência fechada são muitos os profissionais envolvidos, e não apenas os que intervieram directamente no acto médico propriamente dito, desde logo nos diferentes processos decisão - e o alarme social provocado é que poderia ter sido evitado Aí, sim, há nexo de causalidade. Não é notícia - mesmo sendo o mesmo o sofrimento dos pais - a morte de um bebé no parto numa Urgência Obstétrica em funcionamento. Nunca deixará de ser notícia alarmante numa unidade hospitalar que a fechou.
A responsabilidade da Administração do Centro Hospitalar do Oeste, e do Ministério da Saúde em última análise, está no procedimento com que pretende esconder a falta de condições para manter as urgências em funcionamento, omitindo à população o seu fecho. Comunica-a ao CODU/INEM - evidentemente - mas nem todas as pessoas chegam à Urgência de um hospital numa ambulância requerida através do 112. As parturientes, na sua esmagadora maioria, chegam pelo seu próprio pé, pelos seus meios. Se não há informação pública do fecho da Urgência, esperam evidentemente encontrá-la em funcionamento, e é para lá que se dirigem.
É verdade o que é referido no comunicado Centro Hospitalar do Oeste. É verdade que "a urgência externa do Centro Hospitalar do Oeste estava desviada para outros pontos da rede do Serviço Nacional de Saúde", como refere o Ministério da Saúde. Mas é porque falta VERDADE que estas coisas acontecem assim!
Temos um sério problema com os salários em Portugal.
As empresas queixam-se de falta de mão de obra. Queixam-se de falta de gente para trabalhar as dos sectores que recorrem a trabalhadores menos qualificados - como os sectores do turismo e da construção. E queixam-se de falta de trabalhadores qualificados as que pretendem recrutar talento. Isto é: a procura é maior que a oferta mas, ao contrário da lei máxima da economia de mercado, os salários não sobem.
As primeiras oferecem o salário mínimo e procuram pessoas para trabalhos duros e com horários reais superiores às 40 horas semanais. E parece que não há gente disponível para isso, para muito trabalho por pouco dinheiro. As segundas - estudos dizem que 85% dos empregadores têm dificuldade em contratar trabalhadores qualificados - procuram talentos que o país formou, mas que cá não quiseram - e continuam a não querer - ficar. Porque cá as empresas se habituaram a pagar pouco pelo muito que procuram.
As empresas que operam na lógica do salário mínimo daí não saem. A imigração haverá de lhe resolver o problema. E as que procuram e não encontram talento não têm forma de daí saírem.
Temos um problema de salários, e com ele um grave problema de qualificação da nossa economia.
Na campanha eleitoral do início do ano o primeiro-ministro reconheceu este problema. Há dois dias, no sábado, voltou a ele, sublinhando que há um diferencial entre o peso dos salários no conjunto da riqueza nacional (45%) e o que têm no conjunto dos países da União Europeia (48%), concluindo que “isto significa que temos nos próximo quatro anos de conseguir fazer todos em conjunto - a sociedade, o Estado, as empresas - um esforço para que o peso dos salários dos portugueses no PIB seja, pelo menos, idêntico ao que existe na média europeia”. O que “implica um aumento de 20% do salário médio no país”. “Esta é a meta a que nos temos de propor e que temos de ser capazes de, colectivamente, alcançar”, acrescentou.
É a meta colectiva "da sociedade, do Estado e das empresas", enfatizou. O governo pode influenciar a "sociedade" e as "empresas". No "Estado", decide!
E o que é decidiu?
Decidiu nem sequer ajustar os salários à inflação. Salários que, depois daquele golpe eleitoralista de Sócrates, há 13 anos, só variaram para baixo. E decide abdicar de princípios e critérios de gestão de recursos humanos para captar e manter os melhores. Isso é transversal a toda a Administração Pública, e a todos os ministérios, mas é no da Saúde, e no SNS, que atinge o domínio do absurdo.
Um absurdo que já destruiu o SNS, e que levará à completa eliminação do que era a jóia da coroa do nosso Estado Social. O país - o Estado, todos nós - forma profissionais de saúde - médicos e enfermeiros - em quantidade suficiente e de qualidade reconhecida por todo o mundo. Mas não os retém, vão saindo a ritmo galopante, do SNS e do país. E por isso faltam cada vez mais profissionais de saúde no SNS. E nos hospitais cada vez mais ainda.
E no entanto vamos ouvindo sistematicamente o governo falar do aumento do investimento na Saúde. Este ano são mais não sei quantos milhares de milhões de euros, em cima de outros tantos no ano anterior.
Paradoxo? Não, apenas absurdo.
Uma peça da SIC Notícias da última semana relata o absurdo que os profissionais de saúde há muito vêm denunciando, mas que a espuma dos dias tem apagado, entre quezílias e falsas questões à volta do público e do privado. Só no primeiro trimestre deste ano o SNS gastou 34 milhões de euros em serviços prestados, chegando a pagar 90 euros á hora a médicos tarefeiros contratados, que comparam com os 20 euros valor médio por hora pago em trabalho suplementar - horas extraordinárias - aos médicos que trabalham no SNS, com um salário médio que pouco passa dos 2 mil euros mês.
Relata ainda a peça que no Centro Hospitalar do Oeste, dos 31 médicos necessários para manter a Urgência, apenas 7 pertencem aos quadros do SNS. Os restantes, 24 - mais do triplo - são contratados. E que são abertos concursos, mas não surgem candidatos.
É assim o absurdo. Sem estratégia de gestão, valorização e reconhecimento dos seus recursos humanos, o Ministério da Saúde vai depois pagar o triplo ou o quádruplo aos profissionais que deixou sair. Mas - pior ainda - não encontra condições salariais e de motivação para manter os profissionais integrados em equipas e ligados aos doentes, para depois contratar, com o triplo do custo, profissionais que se distribuem à tarefa pelos diversos hospitais, hoje aqui, amanhã ali, desligados de qualquer equipa e, mais ainda, dos doentes.
Tão absurdo como o chefe de um governo que decide assim querer ser levado a sério naquela meta colectiva "da sociedade, do Estado e das empresas"!
Os médicos abandonam funções de direcção clínica e operacional nos seus hospitais por falta de condições para o exercício dessas funções. Mas abandonam também os hospitais do SNS, que trocam pelo estrangeiro e pelo sector privado, igualmente por falta de condições para exercerem a sua profissão. Porque são mal "geridos", porque vivem em organizações disfuncionais, porque lhes faltam meios, porque não se sentem motivados, porque não sentem reconhecimento e porque são mal pagos. Porque o sistema não premeia o mérito, e varre tudo pela mesma bitola. E certamente por mais uma dezena de razões que cabem no flagrante desinvestimento no SNS na última década, incluindo aquele que os dois últimos governos esconderam atrás das cativações com que fintaram os Orçamentos (e os que os ajudaram a aprovar) e o investimento público.
Confrontada na Comissão Parlamentar de Saúde com a demissão em massa de médicos em cada vez mais hospitais, Marta Temido resumiu o problema a falta de resiliência. Para a ministra da Saúde não importa resolver qualquer daqueles problemas. Tudo se resolve passando a recrutar médicos com capacidade para lhes resistir. É o "ai aguenta, aguenta" de há anos. É um estado de espírito!
Nas poucas coisas que teve para dizer, o Presidente Marcelo disse que ... mentir, não valia. Disse que "ninguém vai mentir a ninguém" como se isso fosse uma alínea do decreto do "estado de emergência" que acabara de assinar.
Da mesma forma que há portugueses a "furar" o "estado de emergência", e vão para a praia, para as marginais ou para os copos, há gente a mentir. Por todo o lado. E ontem o primeiro-ministro mentiu. Não sei se foi a primeira vez que furou esta alínea do "estado de emergência" de Marcelo, mas mentiu.
Ao garantir que até agora não faltou nada ao Serviço Nacional de Saúde para combater a pandemia, António Costa mentiu. E soube que mentia, viu-se-lhe nos olhos que sabia que estava a mentir.
Não terá provavelmente ponderado toda a extensão da mentira. Terá intuído que a mentira teria menos danos que a verdade, mas o sentido de responsabilidade - de que tem até dado sobejas provas - obrigava-o a mais. Obrigava-o sobretudo a mais o respeito pelos milhares de profissionais que nos hospitais se debatem com carências de toda a ordem, que a todo o momento os obrigam fazer opções, muitas delas dramáticas. Que, por falta de equipamentos de protecção individual, arriscam todos os dias a sua própria saúde, e que, para não colocarem em risco a dos seus, se vêm forçados a um esgotante isolamento nas poucas horas de retemperamento de que podem dispor.
Sem dúvida, António Costa poderia e deveria ter por momentos virado as costas ao lado mais cínico da expressão política, e procurado outra saída para a pergunta que, de tão óbvia que era a resposta, nem precisava de ser feita. A que encontrou foi chocante. Não tanto por ser mentira, mas por projectar uma insensibilidade que porventura até não terá.
Hoje poderia vir aqui escrever sobre as alarvidades que se disseram e escreveram a propósito da presença entre nós da pequena Greta. E talvez a elaborar uma tese que procurasse explicar por que é que a direita é tão grosseiramente impiedosa com a pequena activista e - quem sabe? - a concluir que não será tanto por serem broncos e ignorantes, mas mais por preconceito ideológico. A ideia que os recursos do planeta são finitos, estando já alguns à beira do esgotamento, pelo que a sua utilização terá que, inapelavelmente, ser sujeita a limites estabelecidos pelo Estado, choca violentamente com as suas mais profundas crenças.
Ou sobre a rara notícia do afastamento dos Tribunais de dois conhecidos juízes por suspeita de corrupção, um por expulsão - Rui Rangel - e outro - outra, Fátima Galante, uma das suas ex-mulheres - por reforma compulsiva. Para eventualmente concluir que esta é uma decisão com algumas décadas de atraso, mas talvez só agora possa ter sido possível.
Mas acabei por escolher escrever sobre um Relatório - a apresentar publicamente amanhã mas já hoje dado a conhecer - da OCDE e da Comissão Europeia que conclui que o nosso Serviço Nacional de Saúde é o mais eficaz a salvar doentes. “O Estado da Saúde na União Europeia (UE) 2019” - assim se chama o Relatório - conclui que em Portugal morre-se menos por causas evitáveis e tratáveis do que na média europeia.
Porque é a melhor notícia de hoje. E nem que seja apenas para dizer que, se é assim com todas as dificuldades por que passa e tem passado, imagine-se o que seria, aos 40 anos, o nosso SNS adequadamente financiado, e bem gerido... Se calhar, e na terminologia do Presidente Marcelo, seria aquilo que já foi: o melhor Serviço Nacional de Saúde do Mundo!