Depois do lufa-lufa de segunda-feira, Marta Temido passou dois dias a matutar no problema das urgências. Ontem, ao final do dia, anunciava as soluções que tinha encontrado. Mais ou menos isto: criar uma comissão de acompanhamento e rever as condições de remuneração dos médicos.
A primeira ficou logo resolvida. Tudo o que resolve com a criação de comissões fica resolvido com o seu anúncio. A segunda ficou para resolver hoje, e ficou hoje resolvida: reuniu com os sindicatos dos médicos, e nem deu para começar a conversa. Saíram todos como entraram. Agora é só esperar que passem mais uns dias e que não se volte a falar no assunto.
Mais eficiente não se pode ser. E ainda dizem que o governo é só tangas ...
Os problemas na Saúde, velhos e conhecidos há muito, mas sempre escamoteados, são finalmente um problema. Reconheceu-o o primeiro-ministro e confirmou-o o lufa-lufa da ministra da saúde durante todo o dia de ontem. Problema, temos. Não é de ontem, nem do fim de semana seco que agitou as águas; é de há muito. Não temos é solução. E esse é o problema maior.
Não "temos um problema". Temos muitos problemas. E não temos soluções, como há muito não temos, e como ontem ficou mais claro que não temos.
Para a ministra da saúde a solução é a abertura de novos concursos. Para "quem quiser", acrescentou, sabendo que ficam sem concorrentes. Para a Ordem dos Médicos a solução passa pela revogação de um despacho qualquer, que impede os médicos do SNS de prestarem serviços ao SNS.
Para a ministra da saúde o problema não está na gestão que o ministério faz dos recursos (humanos, mas não só), em não planear a substituição dos médicos que atingem a idade de reforma e, acima de tudo, em evitar o desencanto que leva os outros a partir. Para a Ordem não há qualquer problema de falta de médicos, há médicos suficientes, e há que continuar a limitar o acesso aos cursos de medicina; é preciso é somar prestações de serviços às horas extraordinárias. No espaços mediático, político e "lobístico" é preciso é mais "privado", e retomar as PPP, como se a fatia privada do negócio da saúde não fosse a maior de sempre. Como se o SNS não fosse o porto de confiança dos portugueses, ricos e pobres, todos no mesmo barco, quando o problema é complicado. E como se os hospitais privados se não apressassem a enxotar os doentes para o SNS logo que as coisas se complicam, ou o "plafond" do seguro se torna insuficiente.
Ontem, para quem ainda não o tinha percebido, ficou claro que estes problemas não têm solução nem a curto nem a médio prazo. E que, para que o governo a encontre até ao fim do mandato, é preciso que António Costa retire o ministério da saúde da dependência do das finanças e entregue a pasta a alguém que não seja apenas o seu porta-voz.
Há poucos dias, no início da semana, num texto em que o tema central era os salários em Portugal, e o exemplo do Estado em política salarial de gestão de recursos humanos, referia uma série de "absurdos". E em particular o absurdo que se vive no Ministério da Saúde, e no Serviço Nacional de Saúde. Socorri-me de uma peça da SIC Notícias que referia a Urgência no Centro Hospitalar do Oeste. Que hoje, em Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, se tornou notícia do dia, saltando para o topo dos telejornais, pela morte de um bebé no Hospital das Caldas da Rainha.
O Hospital não conseguiu garantir a Urgência Obstétrica, e fechou-a. Como já sucedeu em muitos outros hospitais. Como já terá acontecido nesta ou noutras urgências, em outras circunstâncias. E como não terá acontecido noutras ocasiões, em que, mesmo sem condições para garantir o seu funcionamento, se terá recusado a fechá-las.
Em comunicado, a administração do Centro Hospitalar do Oeste garante “não há nenhum nexo de causalidade estabelecido entre a morte do bebé e as limitações no preenchimento das escalas”.Tanto quanto é já conhecido, mesmo sem que sejam conhecidos os resultados do inquérito aberto, isso é verdade. O bebé terá morrido por uma muito grave e rara complicação obstétrica. Que acontece, e que não teria outro desfecho se a Urgência não estivesse fechada. Nem teria sido outro o desfecho em qualquer Urgência Obstétrica em funcionamento noutra qualquer unidade hospitalar. Tanto quanto é conhecido, apesar de a Urgência estar fechada, foi prestada assistência especializada e apropriada ao parto.
A acontecer em qualquer Urgência Obstétrica em funcionamento, o incomparável sofrimento daqueles pais, e em especial o daquela mãe, não seria diferente daquele que está a viver. O dos profissionais envolvidos - e com a Urgência fechada são muitos os profissionais envolvidos, e não apenas os que intervieram directamente no acto médico propriamente dito, desde logo nos diferentes processos decisão - e o alarme social provocado é que poderia ter sido evitado Aí, sim, há nexo de causalidade. Não é notícia - mesmo sendo o mesmo o sofrimento dos pais - a morte de um bebé no parto numa Urgência Obstétrica em funcionamento. Nunca deixará de ser notícia alarmante numa unidade hospitalar que a fechou.
A responsabilidade da Administração do Centro Hospitalar do Oeste, e do Ministério da Saúde em última análise, está no procedimento com que pretende esconder a falta de condições para manter as urgências em funcionamento, omitindo à população o seu fecho. Comunica-a ao CODU/INEM - evidentemente - mas nem todas as pessoas chegam à Urgência de um hospital numa ambulância requerida através do 112. As parturientes, na sua esmagadora maioria, chegam pelo seu próprio pé, pelos seus meios. Se não há informação pública do fecho da Urgência, esperam evidentemente encontrá-la em funcionamento, e é para lá que se dirigem.
É verdade o que é referido no comunicado Centro Hospitalar do Oeste. É verdade que "a urgência externa do Centro Hospitalar do Oeste estava desviada para outros pontos da rede do Serviço Nacional de Saúde", como refere o Ministério da Saúde. Mas é porque falta VERDADE que estas coisas acontecem assim!
O País caiu no fundo... A Europa, sem se aperceber que estamos todos entrelaçados, vai a caminho! É o fim anunciado de um sonho e de um projecto... E o fim de um país autónomo, independente, digno e respeitável. Mas também o fim de um sonho, do sonho europeu, de uma Europa do Atlântico aos Urais, unida pelos laços da paz e do desenvolvimento. É uma desilusão em dose dupla. Porque Portugal e Europa são indissociáveis, por muito que do lado de lá se queira negar a realidade…
O desencanto instalou-se no país... E não existem piores sintomas que o desencanto, a descrença e a desilusão, que surgem quando já tudo se perdeu sem que sequer se vislumbre um ramo a que deitar a mão. Um país sem autoconfiança, sem auto-estima e que simplesmente deixou de acreditar é um país doente e com péssimo prognóstico... O desencanto é tanto que abafa a revolta: até o FMI deixou de ser o papão mau de outros tempos para passar a ser um mal menor! Bem menor, pelo que vamos vendo das posições da União Europeia, claramente mais papista que o papa: mais FMI(sta) que o FMI!
Não pretendo encontrar culpados nem tão pouco consigo encontrar soluções... Mas não consigo olhar para esta classe política sem um forte sentimento recriminatório. Só me ocorre banir toda a actual classe de políticos, inibi-los do exercício de uma actividade que não souberam defender, quanto mais prestigiar. E acreditar que ainda existam pessoas sérias e competentes, com suficiente altruísmo e sentido cívico, para reformular um projecto e recriar um país quase milenar e com uma História que não cabe – nem nunca poderá caber – neste rectângulo desgovernado, desrespeitado e humilhado. Sei bem que isto é difícil. Também esta esperança se vai desvanecendo por detrás de cada desilusão!
E com o país lá bem no fundo a miséria instala-se, cresce e avança. Há já pessoas vão ao serviço de urgência com uma qualquer desculpa apenas para comer uma sopa que já não encontram e que, provavelmente, será a sua única refeição do dia. Os doentes, cada vez mais idosos, cada vez mais crónicos, cada vez mais doentes, recorrem cada vez mais aos cuidados de saúde por descompensação da sua patologia de base: porque já não há dinheiro para os medicamentos que necessitam para o seu equilíbrio. Não há urgência em que não dê entrada alguém que vem de uma tentativa de suicídio: pessoas totalmente destruídas que, esgotado o limiar da resistência humana, pensam encontrar ali, bem no centro do desespero, a única solução para todos os seus problemas.
Esta é a dura e crua realidade. Há miséria, fome, angústia e desespero neste país. Vejo-a passar à minha frente no Serviço de Urgência. Todos os dias, num retrato real de um país que caiu no fundo.
* Convidado especial: Texto publicado hoje no Jornal de Leiria
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