Há um ano - faz hoje precisamente - iniciava-se o processo de vacinação contra a covid. A primeira vacina era administrada ao médico António Sarmento, director do serviço de doenças infecciosas do Hospital de S. João, no Porto. Em Lisboa o processo arrancaria poucos minutos depois, com a vacina a ser administrada ao médico Fernando Nolasco, de medicina interna, do Hospital Curry Cabral.
Deste bem sucedido processo emergiria, logo em Fevereiro, o vice-almirante Gouveia e Melo, que passou do absoluto anonimato para figura nacional do ano para a generalidade da imprensa. Em poucos meses de missão - na realidade pouco mais de meio ano - granjeou fama e prestígio. Em menos, ainda, chegaram apenas dois meses, mostrou que, mais do que não saber o que fazer de tanto prestígio, não saber muito bem lidar com tanta fama. E, de não querer nada, passou a querer tudo. Da humildade do anti-herói à arrogância de super-estrela foi um passo curto. De anti-Messias a rei-Midas, foi só dobrar a esquina.
Hoje, o dia em que se assinala o primeiro ano da vacinação, ascendeu à mais alta patente da marinha e tomou posse como Chefe do Estado Maior da Armada. Não em apoteose, mas também não se pode dizer que tenha sido uma cerimónia discreta. Talvez apenas envergonhada. Onde entrou mudo e saiu calado, depois de tanto ter falado. Sem o primeiro-ministro, de férias. Sem o seu antecessor, desconsiderado. E sem que o Presidente da República, que tem sempre qualquer coisa a dizer sobre tudo e sobre nada, dissesse o que quer que fosse. Nem sequer por que eram agora inequívocos os equívoco há três meses.
E se hoje, neste dia de acerto de contas, puxarmos um bocadinho pela memória, seremos capazes de nos lembrar que o curto passo de Gouveia e Melo, com que dobrou a esquina, começou a ser dado a partir do fim de Setembro, logo a seguir aos equívocos anunciados por Marcelo. E lembrando-nos disso percebemos que Gouveia e Melo tinha pressa. Ora, "depressa e bem não há quem". Nem o vice-almirante, agora almirante!
Não faço ideia se faz ou não sentido vacinar as crianças. Pelo que é dado a conhecer, não são, nem de perto, o principal grupo de risco; mas são tão transmissores, ou mais, que qualquer outro. Se acrescentarmos o efeito da interrupção das aulas, e o verdadeiro drama social que isso possa representar para toda uma geração, teremos os pratos da balança verdadeiramente inclinados para a sua vacinação.
Mas isto é o ponto de vista simples de um leigo.
Claro, mesmo para um leigo, é que não faz qualquer sentido que a DGS não divulgue os pareceres que sustentam a decisão de propôr a vacinação. Tanto mais que não a torna obrigatória!
Promover a vacinação das crianças, que não é obrigá-las a vacinarem-se mas, antes, convocar os pais para a sua vacinação, e simultaneamente comunicar que não divulga os estudos que a aconselham, não é apenas um tiro no pé. É um tiro certeiro no coração da credibilidade das autoridades de Saúde!
É fantástico - 85% da população portuguesa já foi vacinada, e na próxima semana 85% dos portugueses terão tomado a vacina completa!
Para se ter a noção da dimensão desta realidade basta lembrar, pelo lado bom, que há um ano estava a iniciar-se a segunda vaga da pandemia, e ainda nem se falava de vacinas. Pelo lado mau, que África tem apenas 3% da população vacinada.
Num país em que tanta coisa corre sempre mal, os processos de vacinação - este, o mais exigente de sempre, como todos os outros que estão para trás - correm sempre bem. E isso é motivo para nos orgulharmos!
Na ordem do dia pelo mundo fora, o levantamento das patentes das vacinas contra a covid-19 está praticamente ausente do espaço de discussão pública em Portugal. Não ouvimos falar disso por cá.
Não consta da agenda mediática, talvez por quem a constrói achar que não nos diz respeito, que não temos que nos meter nisso. Mas diz-nos todo o respeito, e temos mesmo que nos meter nisso.
Levantar as patentes das vacinas é hoje o passo decisivo no combate à pandemia, sabendo-se, como se sabe, que ninguém estará livre da doença enquanto ela subsistir em qualquer parte do mundo. Que enquanto isso suceder há sempre uma variante nova pronta a atingir-nos. Temos a tendência para esquecer isto, concentrando-nos no nosso umbigo. Se nós - países ricos (sim, sei que soa estranho chamarmos-nos assim, mas apenas somos dos mais pobres dos ricos) - estamos a caminho da imunidade de grupo, estamos safos. Os outros que se lixem ... Está errado quem assim pense.
Quebrar as patentes das vacinas, e liberalizar a produção, é a única forma de rapidamente responder às necessidades dos países sub-desenvolvidos. É a única forma de desligar a bomba-relógio da Índia, cujo tic-tac se ouve por todo o mundo. Insistir em não o fazer é, objectvamente, trocar milhões de vidas por lucros imorais das grandes companhias farmacêuticas.
Sim. Imorais. Porque, como noutras ocasiões já aqui referi, a maioria do investimento no desenvolvimento das vacinas, na Europa como na América, foi público, como dificilmente poderia ter deixado de ser. E o que suportaram está mais que coberto pelos exorbitantes lucros já realizados no abastecimento aos países do primeiro mundo.
Talvez não seja assim tão estranho que o tema esteja tão distante da opinião pública portuguesa, mais interessada nas guerras das marcas, e em levar as pessoas a escolher umas porque sim, e outras simplesmente porque não.
Há uns dias escrevi aqui sobre a forma como a AstraZeneca, num erro erro de estratégia de que nem a mudança de nome a salvou, estava a pagar por se ter metido onde se não devia, com quem se não devia e, acima de tudo, da forma que não devia. Criou-nos um berbicacho, e tornou-se toda ela num berbicacho.
E como não há coincidências, aí está uma notícia de hoje, por acaso a par da (boa) nova que é a chegada ao mercado português da vacina da Janssen, da também americana Johnson & Johnson, de uma única toma, para já com apenas 30 mil doses, mas com um horizonte de curto prazo de 1,5 milhões. É a notícia que a Pfizer aumentou o preço da sua vacina de 12 para 20 euros por dose. Ou seja, qualquer coisa perto dos 70%!
E temos também um "berbicacho", como dizia António Costa, ao comentar a notícia em que o responsável pela estratégia de vacinação da Agência Europeia do Medicamento (EMA), Marco Cavaleri, numa entrevista ao jornal italiano 'Il Messaggero', confirmava a ligação da vacina a casos de tromboses.
O "berbicacho" da AstraZeneca é que já não lhe vale de nada que a EMA tenha de seguida desdito o tal senhor, afirmando que aquele nexo causal não está provado. Como de nada lhe vale as sete mortes, nos trinta casos de formação de coágulos, tenham ocorrido num universo de largas dezenas milhões de pessoas vacinadas. O "berbicacho" da AstraZeneca é que os erros estratégicos não são fáceis de apagar, e pagam-se caros.
O nosso "berbicacho", a que António Costa deu nome, é que todo o nosso processo de vacinação está umbilicalmente ligado a esta vacina. Requeria menos exigências de logística - não precisava de temperaturas tão baixas de armazenagem -, custava um quinto das outras, e garantia a distribuição de 3 mil milhões de doses já este ano.
A Agência Europeia do Medicamento (EMA) tinha prometido pronunciar-se hoje sobre a vacina da AstraZeneca, e a comunicação social quis fazer disso um acontecimento. Aí está o veredicto: “é segura e eficaz”!
Nada de novo, já o vinha dizendo desde segunda-feira passada, quando grande parte dos países da União Europeia já tinha decidido suspender o uso da vacina.
E disse mais a EMA - disse que a vacina não está associada aos casos de coágulos sanguíneos detetados. O que não disse é por que não conseguiu evitar este tiro no pé da generalidade dos países membros, e da própria União Europeia.
A ciência encontrou a vacina para o covid-19 em menos de um ano. Nunca antes tinha sido descoberta e testada uma vacina em tão pouco tempo.
A vacinação, a correr muito bem nuns países, e não tão bem noutros, tornou-se "apenas" no mais rápido processo de vacinação de sempre. Nunca em tão pouco tempo se vacinou tanto, já foram administradas mais de 300 milhões de vacinas.
Os efeitos secundários, que sempre acontecem com todas as vacinas, são confirmadamente marginais. Mais marginais que em qualquer outra vacina.
E no entanto, na Europa, numa decisão exclusivamente política, por medo de uma opinião pública muito permeável ao negacionismo, suspendeu-se a utilização de uma vacina, atrasando um processo em que já estava atrasada relativamente às outras regiões desenvolvidas do mundo. E acrescentando ameaça à economia mais ameaçada pela pandemia em todo o mundo desenvolvido.
A Europa, que nada participou em tudo o que correu bem na ciência, participa activamente em tudo o que correu mal na política.
A pandemia tem-nos mostrado várias caras da União Europeia, e nem todas bonitas. Começou por mostrar uma União Europeia ágil a responder-lhe, para logo depois mostrar que a agilidade tinha pouco de ágil. Agilizar a resposta ágil começou, e está ainda, a ser um problema.
Depois veio a vacina, e nova cara bonita da União, a centralizar, como se fosse um grande país do mundo desenvolvido, a negociação da compra das vacinas. Pouco depois veio a cara feia, e viu-se como fora ultrapassada nessa negociação por todo o mundo desenvolvido, dos grandes, como os Estados Unidos da América ou a Inglaterra, aos pequenos, como Israel.
Uma cara ainda mais feia acaba de se nos mostrar com a suspensão da vacina da Astrazeneca. A instituição da União Europeia que superintende na matéria - a EMA - garante, como de resto a Organização Mundial de Saúde, que não há qualquer problema com essa vacina. Que os casos de coágulos sanguíneos detectados, e que lançaram o alarme geral, não têm ligação com a vacinação, que são casos correntes, perfeitamente dentro das estatísticas do fenómeno.
Que "os eventos envolvendo coágulos de sangue, alguns com características invulgares como o baixo número de plaquetas, ocorreram num número muito reduzido de pessoas que receberam a vacina" e que "o número de eventos tromboembólicos em geral nas pessoas vacinadas não parece ser superior ao verificado na população em geral", sendo que "muitos milhares de pessoas desenvolvem anualmente coágulos de sangue na UE, por diferentes razões".
E no entanto praticamente todos os países, cada um de per si, e com efeito dominó, decidiram interromper a aplicação da vacina, generalizando o pânico entre quem a tinha tomado, e atrasando gravemente o processo de vacinação, que já por si não estava a correr nada bem. Exactamente por escassez de vacinas por, afinal, a negociação centralizada não ter corrido nada bem.
No final da semana passada tinham sido a Áustria, a Noruega, a Dinamarca, o Luxemburgo, a Estónia, a Letónia e a Lituânia a suspendê-la. Durante o dia de ontem seguiram-se os pesos pesados Alemanha, França, Itália e Espanha. E, ao fim do dia, Portugal. Como não podia deixar de ser.
A União Europeia é isto. E por mais que nos custe a todos os que somos europeístas, e que fomos acreditando na construção da nação europeia, nunca deixará de o ser.
É indesmentível que o confinamento está a dar resultados. Já esses, os resultados, poderão não ser tão indesmentíveis. Ou, pelo menos, mais discutíveis. Por uma razão simples - é que a testagem está a diminuir assustadoramente.
Em meados de Janeiro faziam-se cerca de 70 mil testes por dia. No início deste mês, 50 mil. E na última semana apenas 30 mil, bem menos de metade de há um mês.
O confinamento está a resultar, mas significativa e expressiva descida da incidência de covid-19 nos últimos 14 dias que hoje sustentou a reunião com o Infamed, não deveria ignorar esta realidade da testagem. E, com um tão lento ritmo de vacinação, não serão muito avisados os apelos ao desconfinamento. Por muito compreensíveis que possam ser. Mais que as duas vozes que no governo se percebem sobre a matéria.
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