Vuelta 2023 - A ditadura
Está a completar-se a segunda semana da Vuelta, provavelmente a mais espectacular das três grandes competições do ciclismo mundial. Por ser a última do calendário mas, acima de tudo, por ser normalmente a mais aberta. Esta, deste ano, por ser a mais recheada de estrelas: à excepção de Pogacar, conta com todas as estrelas maiores do universo do ciclismo, o que não aconteceu no Giro nem no Tour.
Lá estão Vinguegard, campeão do Tour, Roglic, vencedor do Giro, Remco Evenepoel, campeão do mundo, que este ano ainda não tinha participado em nenhuma das grandes voltas do World Tur (impedido no Giro, por ter testado positivo ao Covid já em competição) e que era tido pelo único ciclista capaz de bater os três grandes (Vinguegard, Pogacar e Roglic) e, claro, a armada completa (apenas sem Yates) da Emirates, com João Almeida, Ayuso e Soler. Completa também (e que armada!) a da Jumbo.
Uma fuga na primeira semana acabou por catapultar para os dois primeiros lugares, e logo com a respeitável vantagem na ordem dos dos minutos, dois corredores de respeito, mas fora da lista dos principais favoritos: o americano Kuss, da Jumbo, e o espanhol Soler, da Emirates.
De Kuss, sabia-se que é um trepador de eleição e, provavelmente, o maior gregário do mundo. Ajudou Roglic a ganhar o Giro, e foi decisivo na vitória de Vinguegaard no Tour. Não se sabia do que seria capaz no papel, e com a responsabilidade, de candidato a ganhar uma grande Volta. De Soler sabe-se que é um bom ciclista, sempre capaz de andar nos primeiros lugares, mas incapaz de grandes rasgos.
O primeiro grande teste a estes dois estava marcado para o contra-relógio de Valladolid, na passada terça-feira, onde Evenepoel, o recém campeão do mundo da especialidade, era o grande favorito. Mas foi apenas segundo, atrás de Filipe Ganna, também já campeão mundial, e pouco à frente de Roglic e de João Almeida. Que fez um contra-relógio fabuloso, ao seu melhor nível, subindo então a sexto da geral, num top 10 que incluía ainda Nelson Oliveira.
Kuss e Soler equivaleram-se, e defenderam bem as suas posições. Para o americano da Jumbo, contando com o melhor colectivo da actualidade, de longe e praticamente imbatível, e com a esperada gratidão de Roglic e Vinguegard - era a hora de lhe retribuírem tudo o que tem feito por um e outro - o desempenho no contra-relógio foi como que o carimbo na lista de principais candidatos à vitória final. O resto fez ele próprio nos dias que se seguiram, demonstrando sempre condições para estar na frente, sem vacilar.
Andavam as coisas assim, com Kuss de vermelho, Soler ali perto, e Vinguegaard, Roglic, João Almeida, Ayuso e Evenepoel todos juntos logo a seguir, até à etapa de ontem, com subida do Tourmalet, já depois da do Aubisque. Aí mudou tudo. Ou quase.
Evenepoel desfaleceu logo no início da etapa, não se sabe bem por quê, a não ser que são coisas que acontecem no ciclismo. A João Almeida não aconteceu a mesma coisa, nem o resultado foi o mesmo, mas também foi alvo de um dia não. O campeão belga nunca mais se encontrou e perdeu quase meia hora. O João, doente, com dores no corpo, uma infecção na garganta e uma noite sem dormir, também ficou para trás logo no início. Mas foi o que é: um campeão e um guerreiro. Fez do resto da etapa, nas subidas do Aubisque e do Turmalet, uma sucessão de "almeidadas", e acabou no 15º lugar na etapa, limitando as perdas a 6 minutos e 47 segundos para Vinguegaard, o primeiro lá no alto. À frente de Kuss, que voltava a dizer que quer, e merece, ganhar a Vuelta, e de Roglic.
Os três da Jumbo, que ficaram também os três primeiros da geral. Se não é inédito, anda lá perto. Inédito é, seguramente, a mesma equipa ganhar no mesmo ano as três grandes Voltas!
João Almeida, apesar do esforço épico, caiu para o 10º lugar na geral.
João Almeida ainda foi capaz de responder ontem mesmo ao infortúnio. Evenepoel fê-lo hoje. Afastado da luta pelos primeiros lugares com os 28 minutos perdidos ontem, hoje teve liberdade para atacar. E fê-lo de imediato. Nada melhor que matar o fantasma logo na primeira oportunidade!
E foi um espectáculo. Só no ciclismo podem acontecer coisas destas. Num dia, a derrota inapelável. No seguinte, uma exibição de esplendor na estrada. Foi para a frente logo no início, subiu na frente tudo o que foi montanha que encontrou. Bardet ainda o acompanhou, talvez mais de 100 quilómetros, sempre na sua roda. A vantagem ia aumentando, quilómetro a quilómetro. Passou os 8 minutos para o grupo dos favoritos, onde os restantes 7 dos 10 primeiros não conseguiam sequer revoltar-se contra a ditadura da Jumbo, imposta pelos três do pódio.
Ayuso ainda tentou, uma ou duas vezes. E pareceu até que a ideia agradava quer a Roglic quer a Vinguegaard. Sem "moral" para atacarem Kuss, a resposta a um terceiro seria o pretexto ideal. O americano sabia disso, nunca desarmou, e tudo ficava na mesma.
A 4 quilómetros lá do alto de Larra-Belagua nem foi preciso Evenepoel atacar. Bardet acabaria por ceder e lá seguiu sozinho o campeão belga até á meta, cortada em lágrimas, com mais de um minuto de vantagem sobre o francês, e mais de 8 sobre o grupo dos primeiros da geral, onde João Almeida se incluía, mantendo o seu 10º lugar, a 8:39 de Kuss, mas a mais de 6 minutos do quinto, Enric Mas.
A Vuelta, a mais democrática das três grandes corridas do mundo é, desta vez, uma ditadura. Da Jumbo. A uma semana do fim, é a mais fechada de todas. Evanepoel deverá ainda ganhar mais uma ou duas etapas. Segurará certamente a camisola da montanha, que hoje arrebatou a Vinguegaard. Mas nem no top 10 entrará.
A Ayuso, quarto, e primeiro não Jumbo, estará agora reservado o papel principal. Se, prisioneiro da armada da Jumbo, se resignar ao seu quarto lugar, Kuss já ganhou. Se atacar para chegar ao pódio, apenas abre a Vinguegaard e a Roglic oportunidade para atacarem o colega de equipa. Sabem que não o devem fazer. Mas que o querem, já se percebeu!